segunda-feira, 26 de agosto de 2013

- Maria no Novo Testamento *Última Parte -


ÚLTIMA PARTE

Chegamos agora à apresentação de Maria em Lucas—Atos. Só há uma referência a Maria em Atos (1.14), mas ela é importante, pois confirma que ela fazia parte do círculo mais íntimo de discípulos ou crentes que aguardavam em Jerusalém o Espírito Santo, depois da morte de Jesus. Isso fornece uma confirmação indireta de que ela estava em Jerusalém quando Jesus morreu.
No evangelho de Lucas, são Isabel e Maria, e não Zacarias e José, que primeiro recebem a notícia de que Cristo está chegando. São essas mulheres que são louvadas e abençoadas pelos anjos de Deus e que primeiro cantam e profetizam sobre Jesus. Lucas as apresenta em Lucas 1 e 2 como participantes ativas dos propósitos salvíficos de Deus, e não como meras observadoras. Elas são os primeiros exemplos de como os humildes serão exaltados quando o Messias vier.
Maria é apresentada em Lucas como uma virgem comprometida com José. Mas é importante observar que Lucas apresentou primeiro seus parentes, Isabel e Zacarias, indicando, desse modo, que Maria faz parte do processo salvífico-histórico que também envolve outras pessoas. Em Lucas 1.28, o anjo Gabriel saúda Maria com as palavras: “Alegra-te, agraciada; o Senhor está contigo”. Essa é uma forma bastante incomum de se cumprimentar uma mulher, e Gabriel, é preciso lembrar, é um dos anjos mais exaltados e nobres, segundo o pensamento judaico. O aparecimento dele a Maria, na pequena Nazaré, é um choque, e o que ele diz é ainda mais chocante. Maria deveria se alegrar por ter sido muito favorecida. Ela será abençoada com o privilégio de dar à luz o Messias e, além disso, ser o primeiro ser humano a dizer seu nome. Lucas parece dar a Maria a mesma posição que Mateus deu a José, nesse aspecto (Mt 1.21).
A pergunta que Maria faz diante dessa anunciação angelical, encontrada em Lucas 1.34, deve ser comparada com a dúvida manifestada por Zacarias. Maria pergunta apenas como aquilo iria acontecer, já que ela não tinha marido, enquanto Zacarias, que fica mudo, pergunta se uma coisa daquelas poderia acontecer. Zacarias queria provas; Maria buscava esclarecimento. O anjo, por sua vez, diz a Maria que ela conceberá pela ação do Espírito Santo. Há uma semelhança extraordinária entre a resposta do anjo em Lucas 1.35 e o texto de Atos 1.8 — ambos os textos falam da vinda do Espírito Santo. Maria, portanto, está presente no nascimento de Jesus e no nascimento de sua comunidade. Assim, Lucas apresenta Maria como um elo-chave entre a vida de Jesus e a vida da igreja, embora Pedro seja retratado como uma ponte ainda mais importante.
A reação de Maria diante da explicação do anjo é a expressão clássica da submissão à vontade e à palavra de Deus: “Aqui está a serva do Senhor; cumpra-se em mim a tua palavra” (1.38). De fato, o texto grego chama-a de escrava do Senhor e, portanto, Lucas retrata Maria como alguém que se entrega totalmente à vontade de Deus. Ela abre mão de seus planos pessoais e desejos para o futuro. A resposta é ainda mais notável pelo fato de indicar que Maria sabe o efeito que isso poderia ter sobre sua reputação diante da comunidade e sobre seu relacionamento com José. Ambos podiam ser destruídos. Maria é retratada como uma pessoa disposta a perder seu noivado e sua boa reputação para cumprir o propósito de Deus — o tipo de sacrifício que Lucas aponta como característica do verdadeiro discípulo. Porém, como veremos, ela é uma discípula em treinamento. De vez em quando, ela comete erros e interpreta mal — ao mesmo tempo que guarda no coração tudo aquilo que precisa ponderar e resolver.
Maria vai visitar sua parenta Isabel, que lhe dá uma bênção dupla. Lucas 1.42 diz: “Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre!”. Ela é bendita porque é a mãe do Messias; além disso, recebe honra porque seu Filho é a pessoa mais abençoada da terra. Obviamente, parte da mensagem dessa história diz que a maternidade é uma função abençoada e sagrada porque Deus escolheu esse meio para trazer Jesus ao mundo. Nenhuma dessas bênçãos teria existido se Maria não tivesse, antes de tudo, se submetido à vontade de Deus e ao seu plano. De fato, Isabel pronuncia uma terceira bênção, encontrada em Lucas 1.45: “Bem-aventurada a que creu que se cumprirão as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor”. A bem-aventurança, por causa da fé, pode acarretar bênçãos físicas, mas Maria tem de lutar para alcançar uma perspectiva apropriada a respeito de suas funções biológica e espiritual. Embora ela tenha declarado ser serva do Senhor, ainda precisa aprender que isso requer ser, em primeiro lugar, discípula de Jesus, e depois sua mãe. Ela também precisa aprender que, para Jesus, as prioridades são, em primeiro lugar, fazer a vontade de seu Pai celestial e, depois, obedecer às ordens de seus pais terrenos, se possível.
Em seguida, no texto conhecido por Magnificat (Lc 1.46-55), Maria aparece como uma profetisa judia que entoa uma canção sobre o futuro, enaltecendo a grandeza de Deus. E um cântico de promessa, mas também de protesto e profecia. Ele fala da poderosa libertação dos pobres e oprimidos, pelo Senhor. A canção tem semelhança com Salmos e também com o cântico de Ana (ISm 2.1-10). Portanto, Maria ocupa um lugar na história da salvação e desempenha também um papel profético nessa história. Entretanto, existe uma diferença entre ela e outras figuras proféticas, pois ela de fato ajuda a tornar realidade a salvação que proclama. Ela não é meramente um símbolo da pobreza de Israel e de sua necessidade de libertação. Como indivíduo, ela realiza as esperanças de seu povo, sendo o veículo voluntário e submisso por meio do qual o Messias vem ao mundo para transformá-lo. Veja, porém, que Maria reconhece que é humilde e que a bênção não lhe foi outorgada por ela ser perfeita, mas sim por causa da graça de Deus em sua vida. O texto a chama de muito favorecida, e não cheia de graça. Ela é um modelo de discipulado e também um exemplo de como Deus concede benefícios imerecidos. Ela não é retratada por Lucas como santa venerada e venerável ou como figura angelical e sem pecado. E verdade, porém, que Lucas se empenha em colocar Isabel à sombra de Maria. Os modelos de discipulado nessa história não têm todos a mesma estatura — há maiores e menores.
Isabel é retratada como a precursora de Maria. Sua concepção milagrosa, fora da idade apropriada, contribui para dar mais certeza a Maria de que as palavras do anjo eram verdadeiras. De Na verdade, a relação entre Isabel e Maria é semelhante à que Lucas traça entre João e Jesus. Observe o tom respeitoso empregado em Lucas 1.42, 43 e 3.16. Assim como ocorre com Isabel, que recebe maior destaque do que Zacarias e é representada sob uma luz mais favorável como modelo de fé, Maria também tem proeminência em relação a José. O nome de José quase não é mencionado antes que as principais profecias e cânticos concernentes a Jesus tenham sido apresentados. No evangelho de Lucas, José é marcado pelo silêncio, assim como Zacarias, ao contrário do que ocorre em Mateus 1 e 2, em que Maria é que permanece em completo silêncio. E pela proeminência da precursora de Maria, Isabel, e da ausência de José que o retrato de Maria ganha relevo dramático, e ela continua a ter papel central nas histórias sobre Simeão e Ana.
Ana e Simeão representam a antiga ordem de judeus piedosos, as velhas esperanças e sonhos. Mas é a Maria que Simeão diz as palavras: “Este menino está posto para queda e para elevação de muitos em Israel, e como um sinal de contradição. Assim, os pensamentos de muitos corações serão conhecidos. Quanto a ti, uma espada atravessará a tua alma!” (2.34, 35). Como Lucas não faz menção a Maria no local da cruz, é improvável que essas palavras tenham alguma coisa a ver com aquele momento. A espada provavelmente simboliza a angústia dolorosa que Maria sentiu ao ver seu Filho criticado e rejeitado por seu próprio povo. Ela faz parte de Israel, mas está dividida entre Israel e seu Filho. E possível, também, que essa frase se refira ao episódio em que Maria é repelida por Jesus (cf. Lc 2.49, 50; Lc 8.19-21). Ana é mostrada como profetiza, nos mesmos moldes de Maria, e passa a dar testemunho sobre Jesus após ver o menino. Enquanto Simeão é um velho cansado que, depois de ver Jesus, se sente pronto para partir em paz, Ana — assim como Maria — representa a nova ordem escatológica, em que as mulheres saem divulgando o evangelho e testemunhando sobre Jesus. Também devemos notar que, no contexto formado pelos retratos de Ana e Isabel, Maria se torna mais uma mulher crente entre outras mulheres crentes, e nem sempre é ela quem demonstra ter mais discernimento entre as que compõem o “verdadeiro” Israel.
A falta de entendimento de Maria se evidencia em vários pontos da narrativa (1.29, 34; 2.33, 50). Lucas 2.50 afirma explicitamente que ela e José não entenderam as coisas que Jesus lhes disse. Nesse aspecto, eles são muito semelhantes aos discípulos de Jesus (18.34). Portanto, Lucas não pinta um retrato idealizado de Maria, e sua história não é um mar de rosas. Lucas quer revelar tanto a alegria quanto a dor, tanto a perspicácia quanto a falta de entendimento. Existe sempre, porém, o lembrete de que, embora às vezes não saiba o que deveria fazer, ela guarda as palavras de Jesus e medita nelas (2.19, 51). Ela é retratada como uma mulher que caminha para o pleno entendimento. Levará muito tempo até que Maria compreenda essas coisas. Aparentemente, Lucas — assim como o quarto evangelista — não crê que seja possível entender tudo antes que chegue o momento da cruz.
Na história de Jesus no templo, que encerra a narrativa da infância em Lucas (2.41-52), são evidentes as tensões entre as responsabilidades da família física e da família espiritual sobre Jesus. E interessante notar que se pode traçar um paralelo entre Maria e Jesus nessa história, porque ambos crescem em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens, à medida que a história se desenrola. O aprendizado cuidadoso e atento caracteriza os discípulos (8.15; 18.21; 10.39). Maria é um modelo de fé acessível ao público de Lucas, pois ela tanto necessita de entendimento quanto o busca; tem fé tanto quanto sente ansiedade.
A história da pregação de Jesus em Nazaré, encontrada em Lucas 4, não inclui observação sobre Maria nem referência a seus irmãos e irmãs. A mãe e os irmãos são mencionados rapidamente quando Lucas se apropria de Marcos 3.31-35 em Lucas 8.19-21. Porém, Lucas apresenta a versão menos agressiva dessa história. Maria e os irmãos de Jesus vão simplesmente vê-lo, e esta é a palavra final de Jesus: “Minha mãe e meus irmãos são estes que ouvem a palavra de Deus e lhe obedecem”. Isso abre espaço para que a família terrena de Jesus seja incluída nessa descrição. Maria não torna a aparecer no evangelho de Lucas, mas nós a encontramos, juntamente com os irmãos de Jesus (onde estão as irmãs, em Lucas?). Atos 1.14 completa a história de Maria mostrando que ela fez a transição para o círculo de seguidores de Jesus em Jerusalém e estava orando enquanto aguardava o Pentecostes, como o resto dos discípulos. Lucas, portanto, nos apresenta o mais completo, honesto e cativante retrato de Maria, dos quatro evangelhos.

Fonte: História e histórias do Novo Testamento - Ben Witherington III.

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